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Direitos Humanos

RJ: pesquisa aponta desigualdade racial no sistema de Justiça criminal


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Os negros estão sobrerrepresentados no Sistema de Justiça Criminal do estado do Rio de Janeiro. Eles representam 69% dos acusados e 77% dos condenados.

Essa parcela da população também tem 43% menos chances de receber oferta de transação penal do que os brancos. A transação penal é um acordo entre o Ministério Público e o autor de uma infração de menor potencial para evitar processo criminal, aplicando-se uma pena alternativa ou multa. 

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Além disso, quase 80% das sentenças que ocorreram em favela ou comunidade resultam em condenação.

A composição racial no Sistema de Justiça Criminal registra 58% da população composta por pessoas negras e 42% de brancas. Isso reafirma a representação mais elevada da população negra em relação à Lei de Drogas.

Os dados são da pesquisa Engrenagem Seletiva: o Tratamento Penal dos Crimes de Drogas no Rio de Janeiro, lançada nesta segunda-feira (24). A realização é do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), que analisou as características que influenciam o tratamento penal nos crimes da Lei de Drogas no estado.

O professor de Direito Penal, Salo Carvalho, coordenador do Grupo de Pesquisa em Ciências Criminais/GCRIM da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que auxiliou na análise de processos judiciais, disse que desde o primeiro momento a ideia foi traçar um diagnóstico da evolução dos processos de crimes de drogas no estado de forma ampla.

“Este estudo tem uma característica de ineditismo em relação a outras pesquisas porque aborda tanto os casos e processos que vão ser imputados por porte para consumo quanto o tráfico dentro da justiça criminal”, afirmou em entrevista à Agência Brasil, lembrando a importância do número de processos analisados e a qualidade dos dados.

“Na pesquisa de porte para consumo não tem erro estatístico porque a gente analisou 100% dos casos.”

Foram analisados ainda 2.169 casos de tráfico e 1.212 de associação para o tráfico: “Não é a totalidade, mas é uma representação estatística bastante evidente em relação ao número de casos”, completou.

Racismo estrutural

Para os pesquisadores, o relatório revela o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro como “uma engrenagem que determina quem será punido e de que forma, a partir de marcadores de raça, classe e território” e mostra ainda que a abordagem policial é porta de entrada para o sistema.

“A proporção de negros vai crescendo na medida em que avança a fase processual. Isso responde a um racismo estrutural na sociedade brasileira. Em geral os negros são acusados de crimes mais graves”, apontou o sociólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Ignacio Cano, à Agência Brasil.

O trabalho analisou 3.392 casos enquadrados nos artigos da Lei de Drogas. Entre eles, 911 são casos considerados de porte para consumo pessoal e o restante de tráfico e de associação para o tráfico. Esses dois últimos, muitas vezes, estão juntos no mesmo processo.

A conclusão mais relevante, no entendimento dos pesquisadores, é que a probabilidade de punição é moldada por esses marcadores raciais e socioeconômicos, e não por provas, como quantidade de droga.

Para a socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, Julita Lemgruber, há dados abundantes que indicam racismo no Sistema de Justiça Criminal no Brasil.

“A sociedade brasileira está marcada por esta tragédia que é o racismo estrutural”, observou em entrevista à Agência Brasil, destacando que o estudo traz informações novas, sendo a primeira pesquisa no país que apresenta dados georreferenciados relativos à abordagem e ao local de residência do acusado.

“A gente tem dados para mostrar que o réu vai ficando mais negro ao longo do processo. Esse é um dado inédito da pesquisa”, comentou.

Ao analisarem os dados, os pesquisadores constataram que a justificativa de ‘comportamento suspeito’ em abordagens foi usada em 42% dos casos de uso de drogas e 41% não têm qualquer alegação registrada. Quando são casos de tráfico e associação, as mais frequentes são denúncias anônimas, além de comportamento suspeito.

Seletividade

Outro dado que chamou atenção são os marcadores de seletividade como o local da abordagem e a raça. Conforme os números, as abordagens por tráfico e associação (artigos 33 e 35) ocorrem predominantemente em territórios pobres, enquanto no caso do uso de drogas (Artigo 28), embora seja majoritariamente em áreas mais ricas da cidade, as pessoas abordadas não são moradores dessas áreas, mas vêm de lugares de baixa renda.

De acordo com o estudo, isso indica que, independentemente da abordagem ou do crime imputado, a maioria dos enquadrados tem origem pobre, já os moradores de bairros de maior renda estão praticamente ausentes dos registros policiais.

“Há uma série de indicadores que mostra realmente como esse sistema opera com uma engrenagem seletiva”, completou Julita Lemgruber.

Território

O fator territorial é relevante na maior parte das sentenças. Os dados indicam que 76,5% das sentenças que resultam na condenação do réu apontam explicitamente o local da ocorrência como favela ou comunidade. Nos territórios sob domínio de facções criminosas o número sobe para 79,3%.

“Acaba sendo uma criminalização genérica de toda uma população. O fato de morar em uma favela, e desta favela ter domínio de facção criminosa, aumenta a probabilidade de condenação exponencialmente”, avaliou o professor Salo Carvalho.

A entrada no domicílio do acusado ou de terceiros também tem relação do território. Isso ocorreu em 20% dos casos de tráfico e de associação, sendo que apenas 7% tinham registro de ordem judicial que permitisse a entrada.

Em 19,4% dos casos há menção explícita de o local da ocorrência ter sido em favela ou comunidade, que aumenta consideravelmente conforme o tipo de crime.

Nos casos de uso de entorpecentes, a indicação de favela aparece somente em 3%. No entanto, sobe para 15%, no caso de tráfico. A alta é ainda maior no caso de associação, em que as menções à favela chegam a quase a metade (47,6%).

Súmula 70

Ignacio Cano destacou que a aplicação da Súmula 70 – instrumento jurídico no qual o depoimento policial é a única prova do processo –, é um fator que resulta na condenação quase automática.

“Essa súmula foi alterada parcialmente, mas ainda representa essa ideia do peso fundamental da palavra do policial no julgamento. Quando o juiz menciona a Súmula 70 na sua sentença, a probabilidade de condenação é muito alta.”

“Significa que muitas pessoas são condenadas apenas com a palavra do policial”, observou, defendendo a mudança na utilização dessa súmula, como também no entendimento do uso de drogas como problema de saúde pública.

Embora considere uma questão difícil, a diretora do CESeC disse que a luta de pesquisadores para que ocorra uma mudança do TJRJ na aplicação da Súmula 70 continua.

“É nossa responsabilidade continuar insistindo nisso. Vai chegar o momento que essa situação se torne insuportável”, apontou Julita.

Tipos de drogas

A imputação inicial também é influenciada pelo tipo de substância apreendida. Com base nos dados coletados, a pesquisa observou que a maconha foi a droga mais comum em casos de uso (59,6%). Já nos casos de tráfico, o percentual é maior (79,5%) quando a droga é a cocaína.

Segundo o estudo, a imputação inicial também determina o andamento do processo, porque o acusado por tráfico ou associação tem altas probabilidades de ser denunciado, o que não ocorre com quem é enquadrado por porte para consumo pessoal.

Os registros apontaram ainda que 94% das pessoas imputadas pela polícia por tráfico ou associação para o tráfico são denunciados pelo Ministério Público por um dos artigos ou na combinação dos dois.

Nos casos de imputação original por associação, 73% recebem denúncia por associação, tráfico ou ambos; quando os dois crimes são imputados paralelamente, 85% acabam denunciados por essas tipificações.

Transação penal

O trabalho deixa evidente o punitivismo e a seletividade penal nas diversas etapas do processo. A transação penal, acordo realizado pelo Ministério Público com o autor de infração penal de menor potencial ofensivo para obter pena alternativa como multa ou restrição de direitos, é oferecida, principalmente, aos acusados brancos (60,8%).

“Quando você é branco e tem uma situação mais favorável, tem maior probabilidade de receber a oferta de transação penal, do que se é negro ou uma pessoa de menores recursos econômicos”, disse, completando que essa informação é uma das grandes novidades da pesquisa para dados de uso de drogas.

O professor Ignacio Cano classificou como ‘incentivo perverso’ destinar à própria polícia, a multa aplicada aos usuários de drogas na transação penal.

“A multa vai fortalecer o orçamento da polícia. Não são grandes quantidades, mas não deveria existir esse incentivo perverso que uma pessoa presa pela polícia acabe pagando uma multa que beneficia a própria polícia”.

A condição socioeconômica é mais um fator determinante nas transações penais. Quem mora em territórios pobres recebe menos oferta desses acordos do que as pessoas de classe média.

Os mais ricos são os que menos recebem propostas de transação, mas os que mais se beneficiam deste instrumento. Isso porque nesta faixa de alta de renda, a persecução penal é tão menor que não há necessidade da transação, já que os desfechos com arquivamento ou absolvição são ainda mais favoráveis ao acusado. 

Além de terem mais chance de acesso à transação penal, as pessoas brancas são as mais enquadradas nos artigos de porte para consumo pessoal. Ainda na questão racial, o estudo apontou que nos casos de condenação por associação 64% dos condenados são negros e 36% brancos.

As diferenças entre as classes também estão presentes na aplicação de penas pelos juízes para réus. Enquanto a média da pena por crimes de drogas entre brancos é de 810 dias, para os negros a pena chega a 1.172 dias.

Segundo Ignacio, a discricionalidade dos juízes na aplicação da pena é grande. “Tem juiz que considera pena institucional diretamente por uso e tem juízes que fazem condenações mais longas ou mais curtas”, indicou.

Metodologia

A pesquisa foi realizada com base na análise de todos os casos de pessoas processadas por crimes de uso de drogas nos anos de 2022 e 2023. Nos casos de tráfico foi considerada uma amostra representativa do universo de processos julgados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).

CESeC

A pesquisa foi realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, com apoio do Instituto Betty e Jacob Lafer, e em parceria com o Grupo de Pesquisa em Ciências Criminais (GCRIM), do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ, além da participação do Laboratório de Análise de Violência da UERJ. A solicitação para a coleta de dados foi encaminhada ao TJRJ.

O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania foi fundado em 2000, para desenvolver pesquisas e projetos nas áreas de segurança pública, justiça e política de drogas. O compromisso principal é a” promoção dos direitos humanos e a luta contra o racismo no sistema de justiça criminal brasileiro”.

 

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