De propriedades medicinais, a arruda é a única planta que não entra na sala da diretora do Museu da História e Cultura Afro-Brasileira (Muhcab), Sinara Rúbia. Cercada de espadas-de-São-Jorge, na sede da instituição, no centro do Rio de Janeiro, a filha de Iansã, na tradição do Candomblé, atriz, autora e educadora, repassa sua trajetória até chegar à direção do principal equipamento da cidade dedicado à valorizar narrativas negras e recontar a história do Brasil.

“Esse é um museu certo, um museu vivo, quilombo, que trabalha tanto o acervo físico, quanto o nosso patrimônio cultural afro-brasileiro, que é imaterial”, afirmou.
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A caminhada de Sinara até aquela sala, de pé direito alto, no prédio onde funcionou a primeira escola pública do país, inaugurada em 1877, depois, centro cultural e, posteriormente, um museu, teve momentos marcantes. São 50 anos desde o seu nascimento, no interior do estado, em Itaperuna, onde cuidou, a base de muita contação de histórias, das três irmãs mais novas, inclui experiências racistas em Petrópolis, onde viveu e se formou, até ser acolhida pelo movimento de mulheres negras na cidade do Rio, onde se transformou. Foi no Grupo Cultural Balé das Iyabas, que nasceu a performance do “Partido dos Panteras Negras”, que Sinara, uma ex-jovem evangélica, levou para as ruas com mais três amigas.
A primeira aparição foi durante o carnaval de 2014, na cidade do Rio, com direito à reprodução, de cartolina e papel, de uma metralhadora 7,62, em referência ao armamento usado legalmente por membros dos panteras, movimento de defesa dos direitos dos negros, nos Estados Unidos, na década de 1960.
“No domingo de carnaval, saímos da Glória, marchando, de Black Panther, passamos no meio da feira em direção a um bloco, no centro”, lembrou. No tempo do movimento, havia um forte movimento por direitos civis e muitos ativistas foram vítimas da violência policial nos EUA. Aqui, “as pessoas aplaudiam, e, quando aglomerava, a gente fazia a performance, cada uma apresentava a sua arma: um fio de contas, em referência à nossa ancestralidade, um livro, uma outra coisa que não lembro e a arma. Cada uma trazia no peito uma referência: Angela Davis, Carolina Maria de Jesus, uma mãe de santo e a imagem da mãe da Valéria, que era a referência dela”.
A apresentação do grupo ganhou o Brasil após a I Marcha das Mulheres Negras, um ano depois, em 2015, em Brasília, quando elas também performaram vestidas de panteras. As imagens do ato viralizaram. Na ocasião, Sinara tinha abandonado a metralhadora. Entrou em cena, uma espada, símbolo de sua orixá.
“Para muitas mulheres negras que perderam seus filhos vítimas para a violência, a arma é símbolo de letalidade, e não de autodefesa, como era para as panteras”, explicou Sinara. “Então, nos atos anteriores, essas mães, muitas, senhoras, não viam em nós, ativistas, revolucionárias, com armas legalizadas, um partido político, mas o tráfico de drogas”, completou. Por isso, ela substituiu a referência.
“Eu sou uma pantera negra não só de uma performance. Eu sou uma pantera negra do meu tempo e do contexto cultural do meu país”, afirmou. “Sou uma pantera educadora, ativista, que estuda, que faz parte da intelectualidade negra, eu sou formadora, formei professoras de literatura e contadores de histórias, agora, estou na área de patrimônio imaterial porque trabalho a tradição oral”, justificou.
Em 2015, a violência e o racismo eram temas da I Marcha das Mulheres Negras, para onde a ativista levou sua espada de Oyá. A caminhada, no entanto, na Esplanada dos Ministérios, por uma coincidência infeliz, foi interrompida por tiros disparados para o alto por policiais civis que pediam intervenção militar.
Muita coisa mudou nos últimos dez anos no país, mas mulheres negras, destaca Sinara, permanecem na base da pirâmide das desigualdades, inclusive, com menor renda, mesmo que muitas tenham ascendido profissionalmente, como a própria diretora do Muhcab, autora de seis livros, mestra e doutoranda pela Fundação Getulio Vargas, onde pesquisa as erveiras da cidade – que receitam ervas.
Três anos à frente do Muhcab, um museu de tipologia híbrida, Sinara Rúbia mostrou que a instituição, que conta a história da redescoberta do Cais do Valongo e exibe também achados arqueológicos, não pode se dissociar de manifestações culturais, uma das marcas civilizatórias deixadas pelos africanos. Na visão da diretora, uma gestão comprometida em reverter o racismo é uma forma de reparação.
“Parafraseando Nego Bispo, esse museu aqui não é para contar a história de ‘ nós perdendo’, mas de ‘nós ganhando’”, disse. “Por isso, a gente conta a história da capoeira, do samba, do maculelê, dos quilombos, é um museu que conta a história de protagonismos, memória, orgulho e identidade, o ‘nós ganhando”, frisou.
Com esse pensamento, Sinara inaugurou, na noite da última terça-feira (19), junto com a arquiteta Gisela de Paula, às vésperas do Dia da Consciência Negra, uma galeria de arte negra dentro do museu. A intenção do Espaço Berê é apresentar obras que dialoguem com memória, ancestralidade e afeto, explicou. Segundo ela, a contemplação da arte deve estar integrada à função comunitária.
A gestão que Sinara imprimiu no Muhcab, na visão dela, partindo de uma perspectiva negra é uma forma de reparar a desumanização de pessoas pretas e pardas, um dos legados deixados pela escravidão.
“Estamos em um momento da sociedade, de questionar os acervos dos museus, pelo caráter colonial, muitas vezes, dos acervos, fruto de roubos e expropriações. Daí, a importância de ter um museu negro, como uma mulher negra, é uma disruptura”, destacou.
O próximo compromisso de Sinara é em Brasília, dia 25, onde ela volta a empunhar a espada de Iansã, como uma pantera. Parece que os ventos sopram a favor.
