Um tema sensível e de grande impacto no universo notarial e registral brasileiro voltou à pauta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em jogo, está a legalidade de uma lei estadual paraibana que obriga os registradores civis a repassarem parte de suas receitas a entidades de classe representativas da atividade extrajudicial. O Pedido de Providências nº 0000706-36.2025.2.00.0000, protocolado contra o Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB), expõe tensões institucionais e renova discussões sobre a correta destinação de verbas públicas.
O foco do embate é o art. 5º, § 2º, da Lei Estadual nº 12.510/2022, que determina que 5% da receita dos cartórios sejam destinados a associações como a ANOREG/PB e a ARPEN/PB. A norma nasceu com o propósito de fortalecer as entidades de classe, reconhecendo o importante papel de apoio técnico e logístico que essas instituições prestam à atividade registral, sobretudo no gerenciamento de sistemas e apoio às serventias deficitárias.
Se o dinheiro vem de taxas públicas, ele pode ser transferido a entidades privadas?
Apesar das boas intenções do legislador estadual e do protagonismo das associações no aprimoramento do sistema registral, surgem debates jurídicos sobre os limites da atuação administrativa. Alguns argumentam que a norma cria uma contribuição parafiscal não prevista no sistema tributário nacional. Amparam-se em precedentes do Supremo Tribunal Federal (ADIs 3.660 e 5.539), que vedam o repasse de emolumentos a entidades privadas. Como tributos vinculados, taxas e emolumentos devem custear exclusivamente o serviço público que lhes dá origem.
Se o dinheiro vem de taxas públicas, ele pode ser transferido a entidades privadas?
Já o TJPB e as associações defendem com firmeza a legalidade do modelo. A ANOREG/PB e a ARPEN/PB ressaltam o seu papel técnico e essencial na operação do Fundo de Apoio ao Registro das Pessoas Naturais (FARPEN), que assegura a sustentabilidade econômica dos cartórios deficitários e viabiliza a gratuidade de inúmeros atos registrais em prol da população mais carente. As entidades destacam ainda que atuam com respaldo legal, sob supervisão das corregedorias e órgãos de controle, garantindo suporte técnico especializado e eficiência operacional.
Controle externo dos valores arrecadados
Mesmo diante da existência da lei, subsiste a dúvida: seria legítimo permitir que entidades associativas concentrem funções de arrecadação e gestão financeira de recursos públicos, mesmo não integrando formalmente a estrutura estatal?
O CNJ, em parecer assinado pela desembargadora Agamenilde Dias Arruda Vieira Dantas, abordou o tema com prudência. Reconheceu que não lhe cabe declarar a inconstitucionalidade de leis estaduais — atribuição exclusiva do Supremo Tribunal Federal —, mas reafirmou sua competência para fiscalizar os efeitos administrativos dessas normas sobre o funcionamento dos serviços extrajudiciais.
O CNJ deve apenas ‘observar’ leis estaduais, ou tem o dever de fiscalizar a cobrança
O parecer enfatizou: “a previsão de cobrança compulsória em favor da ANOREG/PB e ARPEN/PB, ainda que respaldada por norma estadual, afronta diretamente o art. 145, II, e o art. 5º da Constituição Federal, comprometendo o controle público e a transparência na gestão das receitas vinculadas ao serviço registral”.
Recomendação do CNJ
Como encaminhamento, o CNJ recomendou que o TJPB reavalie com cautela a obrigatoriedade dos repasses e assegure que os custos operacionais do FARPEN sejam suportados integralmente pelo próprio fundo, sob fiscalização direta do Estado. O parecer também sugere o envio dos autos ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas para eventual apuração de responsabilidades administrativas.
Importa ressaltar que a atuação das associações de classe tem sido historicamente relevante no apoio às serventias extrajudiciais, contribuindo para a profissionalização, modernização tecnológica e uniformização dos procedimentos registrais. Da mesma forma, o CNJ reafirma seu papel institucional de zelar pela moralidade administrativa, transparência e regularidade da atuação dos serviços notariais e registrais no país.
O caso paraibano reflete um dilema recorrente no modelo brasileiro: como equilibrar a necessária colaboração das entidades representativas com a preservação rigorosa do interesse público e da legalidade na gestão de recursos vinculados ao serviço extrajudicial. Enquanto as respostas não se consolidam, o CNJ segue atento, cumprindo sua função de sentinela administrativa.
Processo mencionado na matéria
Para mais informações, acesse a página do Conselho Nacional de Justiça:
https://www.cnj.jus.br/pjecnj/Processo/ConsultaProcesso/listView.seam
Consulte o Pedido de Providências (PP) nº 0000706-36.2025.2.00.0000.