O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) surpreendeu o universo jurídico com uma iniciativa ousada e elogiada: a criação do Exame Nacional dos Cartórios (ENAC), regulamentado pela Resolução CNJ nº 575/2024. A proposta, inédita no país, busca elevar o nível técnico, uniformizar o acesso e democratizar a seleção de tabeliães e registradores em todo o Brasil.
A intenção é clara: garantir maior qualidade, diversidade e periodicidade nos concursos para serventias extrajudiciais, evitando a histórica morosidade que vinha atrasando a realização dos certames em diversos estados.
UMA PROPOSTA MODERNA, MERITOCRÁTICA E BEM-INTENCIONADA
Contudo, a implementação de uma medida de tamanha envergadura, ainda que louvável em seus objetivos, naturalmente acarreta desafios e suscita questionamentos. Uma petição formalmente apresentada ao CNJ por um grupo de candidatos ilustra essas preocupações, destacando a necessidade de um debate aprofundado sobre os impactos práticos da nova exigência. Embora o mérito da política pública seja reconhecido, a petição aponta para a ausência de um mecanismo de transição adequado na Resolução CNJ nº 575/2024, impondo a obrigatoriedade da aprovação no ENAC de forma imediata para novos editais. Esse cenário, segundo os peticionários, gerou um “vácuo jurídico”, dado que concursos poderiam ser publicados antes da efetiva realização e homologação do primeiro ENAC.
O EXAME NACIONAL DOS CARTÓRIOS (ENAC): UM AVANÇO NECESSÁRIO COM DESAFIOS INERENTES
A Resolução CNJ nº 590/2024 buscou endereçar essa lacuna, permitindo que a comprovação de aprovação no ENAC pudesse ser apresentada até a fase da prova oral para editais publicados até 30 de junho de 2025. Entretanto, a argumentação dos candidatos sugere que essa previsão, embora bem-intencionada, possui um caráter remediador e um marco temporal que carece de justificativa técnica, desconsiderando o próprio cronograma de homologação do primeiro ENAC, previsto para ocorrer após a data-limite da transição. A preocupação reside na possibilidade de exclusão de candidatos que, mesmo tendo realizado o exame, não teriam o certificado em mãos no momento da inscrição preliminar para concursos abertos após 30 de junho de 2025.
IMPACTOS FINANCEIROS E OPERACIONAIS DOS CONCURSOS ESTADUAIS
Outro ponto levantado diz respeito à sustentabilidade financeira dos concursos estaduais. Com a limitação do universo de candidatos aprovados pelo ENAC (que em sua primeira edição teve uma taxa de aprovação de aproximadamente 21,88% entre os que realizaram a prova), surge o questionamento sobre a capacidade de arrecadação das taxas de inscrição para cobrir os custos operacionais dos certames. Isso poderia, hipoteticamente, levar ao esvaziamento, cancelamento ou adiamento de concursos, perpetuando a vacância em diversas serventias.
A ANALOGIA COM O ENAM: DIFERENTES MODELOS, REALIDADES DISTINTAS
A analogia com o Exame Nacional da Magistratura (ENAM) também é posta em perspectiva. Enquanto a magistratura possui remuneração e infraestrutura padronizadas, a atividade notarial e de registro, embora delegada, opera sob regime de autofinanciamento e com receita variável. A aplicação de um filtro tão seletivo sem prévia avaliação dos impactos econômicos e funcionais pode agravar o desinteresse por serventias em áreas de menor atratividade.
Os desafios que emergem de sua implementação, contudo, convidam a uma reflexão construtiva sobre a necessidade de ajustes para que a alta qualificação almejada se harmonize com a viabilidade prática e a ampla acessibilidade aos certames.
O PONTO DE TENSÃO: O DESAFIO DA IMPLEMENTAÇÃO
O Exame Nacional dos Cartórios (ENAC) foi concebido como uma etapa eliminatória mandatória prévia à inscrição em concursos estaduais, estabelecendo-se como um pré-requisito indispensável para os interessados em ingressar na atividade notarial e de registro. O propósito subjacente a essa iniciativa é, inegavelmente, instituir um padrão mínimo nacional de qualificação técnica para os futuros delegatários.
Não obstante a relevância intrínseca dessa medida, emergem questionamentos legítimos, levantados tanto por candidatos quanto por especialistas na área jurídica. Tais indagações convidam a uma reflexão aprofundada sobre os desafios inerentes à sua aplicação prática:
- Como equilibrar o legítimo objetivo de qualificação nacional com a garantia de acesso isonômico e efetivo às funções públicas em todo o território?
- O modelo do ENAC deveria adotar uma transição mais gradual, permitindo maior previsibilidade e planejamento aos candidatos e aos tribunais estaduais?
- Será que o desafio maior não é só selecionar bons profissionais, mas também garantir que cada serventia — inclusive as mais distantes — encontre interessados aptos e dispostos a assumir o serviço?
Nesse contexto de debate, torna-se relevante indagar a percepção quanto ao momento mais adequado para a exigência da comprovação de aprovação no Exame Nacional dos Cartórios:
- Deveria ser demandada apenas na posse?
- A condição de pré-requisito para a inscrição inicial é a abordagem mais equânime?
- Uma transição gradual seria a solução ideal para harmonizar os interesses envolvidos?
- Há, porventura, outro modelo que poderia otimizar a implementação do ENAC, conciliando eficácia e justiça?
REFLEXÃO NECESSÁRIA: CONCILIANDO MÉRITO, INCLUSÃO E SUSTENTABILIDADE
O CNJ deu um passo histórico e corajoso. O avanço é inegável e merece reconhecimento. Agora, cabe à sociedade e à comunidade jurídica debaterem, de forma ampla e plural, como refinar a execução dessa relevante política pública, harmonizando qualidade, segurança jurídica e inclusão regional.
O desafio é não deixar nenhum candidato para trás. Como equilibrar o rigor meritocrático com a realidade federativa brasileira? A discussão está posta. Ouçamos todas as vozes neste debate histórico.
PROCESSO MENCIONADO NA MATÉRIA
Para mais informações, acesse a página do Conselho Nacional de Justiça:
https://www.cnj.jus.br/pjecnj/Processo/ConsultaProcesso/listView.seam
Consulte o Procedimento de Controle Administrativo (PCA) nº 0004290-14.2025.2.00.0000.