Avanços obtidos por políticas como as cotas raciais e a demarcação de territórios quilombolas contratastam com um cenário de recrudescimento da violência racial e movimentos que negam o racismo. Na visão de ativistas do movimento negro ouvidas pela Agência Brasil para o Dia da Consciência Negra, a igualdade racial ainda é um cenário distante, mas a luta da população negra avança em sua direção.
A assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Carmela Zigoni, não acredita que haja muito a ser comemorado no Brasil em termos de avanços em igualdade racial.
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“São muitos os desafios ainda. A gente está longe de alcançar uma equidade racial de fato no Brasil, um país muito racista. E o avanço também dessa ideologia conservadora volta com uma série de práticas que estavam até melhorando, como o racismo mais direto, mais violento, a exemplo do que aconteceu com a invasão de uma escola que estava ensinando a história da cultura afro-brasileira e a professora foi ameaçada”, criticou Carmela, em entrevista à Agência Brasil.
Carmela se referiu à invasão da escola Emei Antônio Bento, situada no bairro do Butantã, na capital paulista, por policiais militares armados, depois de terem recebido a ligação do pai de uma criança de 4 anos que desenhou um orixá em uma tarefa escolar. O pai também é militar e não gostou que a filha estivesse aprendendo sobre a história e a cultura afro-brasileiras, apesar de a Lei 10.639/2023 garantir que o ensino sobre a contribuição afro-brasileira é uma obrigação das escolas. O caso ocorreu no último dia 12 e provocou repúdio de parlamentares e entidades.
“Então, acho que a gente deu alguns passos para trás como sociedade e como instituições também, porque a gestão do governo Bolsonaro foi extremamente racista, ao retirar a política de igualdade racial do plano de governo”, acrescentou.
Ela elogiou a retomada da política de igualdade racial no país pelo governo federal, que colocou a política de novo no plano plurianual, fez os decretos de regularização fundiária para as populações quilombolas e começou a colocar orçamento para essa política pública acontecer.
Para Carmela, a reestruturação da política de igualdade racial em âmbito federal e, principalmente, do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), bem como o retorno do orçamento para essa política pública, são os pontos positivos a serem destacados no Dia da Consciência Negra.
Na análise da ativista de direitos humanos e fundadora da organização não governamental (ONG) Criola – Pelos Direitos das Mulheres Negras, Lúcia Xavier, a mudança de um governo conservador para outro mais democrático melhorou um pouco o ambiente para a população negra brasileira.
“Mas [isso] não pode ser entendido como avanço dos direitos, sobretudo da população negra, como igualdade racial ou mesmo pelas condições dos direitos das mulheres”, disse à Agência Brasil.
Apesar disso, para Lúcia, há muitas boas intenções, mas nada que vença a desigualdade e impeça o nível de violência e desigualdade a que essa população está exposta.
“Você tem uma ação afirmativa voltada para a educação, o que é uma coisa muito positiva, mas, em compensação, não tem trabalho, há uma violência policial enorme, você tem dificuldade de permanecer nas universidades, os trabalhos com melhores condições não estão disponíveis para essa população, e você acaba sofrendo as consequências desse processo”.
Conquistas
A coordenadora da Revista Afirmativa e ativista da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e do Instituto de Mulheres Negras (Odara), Alane Reis, avaliou que é possível celebrar algumas conquistas da luta pela igualdade racial, que são fruto de décadas e até de séculos de organização política coletiva da população negra. Essa igualdade, porém, não foi alcançada.
“Esses movimentos conseguiram, a partir de muita luta, conquistar algumas coisas, entre as quais as políticas afirmativas nas universidades e nos concursos públicos. Houve também a garantia constitucional do direito das populações quilombolas, embora o Brasil ainda atue contra a sua Constituição quando essas populações quilombolas não adquirem com facilidade a sua demarcação e seus direitos ancestrais”.
Apesar das dificuldades para que isso aconteça, Alane Reis disse à Agência Brasil que as políticas afirmativas e o direito à terra tornam possível celebrar a quebra do mito da democracia racial.
“Agora, 55 anos depois, a gente pode dizer que esse mito da democracia racial ruiu, por mais que ainda exista uma parcela conservadora de grupos racistas que defendem que não há desigualdade e que isso é um discurso de vitimização”.
Alane frisou que é necessário que existam políticas, ações e programas que incentivem as oportunidades e o acesso a direitos da população negra. Ela ressalta que a população negra, sobretudo as mulheres negras, vivenciam os piores níveis sociais em todos os setores.
“Nós somos a base da pirâmide e, nas estatísticas sobre acesso à renda, à educação, a direitos civis e políticos, nós somos a minoria. Somos 2% do Congresso Nacional e nunca existiu no Supremo Tribunal Federal (STF) uma mulher negra ocupando uma cadeira”.
Para ela, as políticas afirmativas influenciaram a juventude negra, que hoje é orgulhosa de sua negritude, o que não ocorria há 20 ou 30 anos.
“Os jovens não se orgulhavam do seu cabelo, da sua negritude, da sua cultura, e isso foi quebrando ao longo do tempo. Nos últimos 10 ou 15 anos, isso mudou. As crianças negras falam de sua cor e não de forma mais amenizada, tratando-se como “moreninhas”. O cenário hoje é diferente”, garantiu.
Denúncias
Dados do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania revelam que de janeiro de 2025 até o dia 16 de novembro, o serviço Disque 100 recebeu 13.813 denúncias de igualdade racial, compreendendo racismo, injúria racial e violência política e étnico-racial, com 26.901 violações. São Paulo lidera as denúncias de igualdade, com total de 3.631, seguido pelo Rio de Janeiro (1.898) e Minas Gerais (1.260). As mulheres são as principais vítimas das denúncias de racismo este ano, representando 51,51% do total, enquanto os homens somam 38,64%.
