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“Parecia um hospital de guerra”, lembra mãe de jovem morto em chacina


Na imagem do porta-retrato que foi colocado na estante da sala está um jovem rapaz negro, vestindo uma camisa listrada do São Paulo Futebol Clube. O jovem Fernando Luiz de Paula está de boné, com os lábios bem abertos, em um largo sorriso.

A fotografia de Fernando foi colocada na estante que fica bem em frente a uma parede amarela de uma casa simples do Jardim Mutinga, em Barueri, na Grande São Paulo. Parede que ele mesmo pintou, pouco antes de ser assassinado no dia 13 de agosto de 2015, exatos dez anos atrás, no episódio violento que ficou conhecido como Chacina de Osasco, Itapevi e Barueri. Dezenove pessoas morreram e sete ficaram feridas.

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Os crimes ocorreram nos municípios de Barueri, Osasco e Itapevi, em um raio de 7 quilômetros, entre as 21h e as 23h daquela noite. Do total de 19 mortes, 15 ocorreram em Osasco, três em Barueri e uma em Itapevi.

Os assassinatos foram uma vingança pelas mortes de um policial militar (PM) e de um guarda-civil metropolitano ocorridas dias antes – e foram praticados por PMs. De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público sobre o caso, os crimes ocorreram após as mortes do policial militar Admilson Pereira de Oliveira, que foi baleado ao reagir a assalto em um posto de gasolina, onde fazia “bico” como segurança, e do guarda civil de Barueri Jeferson Luiz Rodrigues da Silva, que também morreu depois de reagir a um assalto.

 



Zilda Maria de Jesus em frente a uma foto do filho Fernando, assassinado em chacina em Barueri há dez anos –  Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Dois anos após a chacina, quatro policiais foram a julgamento. Dois deles, Fabrício Emmanuel Eleutério e Thiago Barbosa Henklain, foram condenados pelos crimes. Eleutério foi condenado à pena de 255 anos, sete meses e dez dias de prisão. Já Henklain recebeu sentença de 247 anos, sete meses e dez dias de prisão.

Naquele julgamento, o guarda civil Sérgio Manhanhã também foi condenado a 100 anos e dez meses de prisão. O ex-PM Victor Cristilder dos Santos, julgado separadamente, em março de 2018, foi condenado a 119 anos, quatro meses e quatro dias de reclusão.

No entanto, as defesas recorreram, e um novo julgamento do caso foi realizado em 2017. Tanto Cristilder quanto Manhanhã acabaram sendo absolvidos.

Fernando

“Na época meu filho tinha 34 anos e estava desempregado porque estava saindo de uma tuberculose. Tanto é que ele começou a pintar aqui, né?”, conta a mãe de Fernando, Zilda Maria de Jesus, apontando as paredes de casa.

Fernando era alto e tinha o apelido de Abuse, já que lembrava o bailarino Sebastian, da propaganda das lojas C&A. “Nossa, todo mundo gostava do meu filho”, recorda a mãe.

Poucas horas antes de ter sido assassinado com tiro na testa, Fernando estava pintando a casa onde vivia com a mãe. Quando ela chegou do trabalho, encontrou a casa arrumada – o que lhe causou estranhamento, já que o filho costumava ser bastante bagunceiro.

 



Zilda Maria de Jesus na casa onde vivia com o filho Fernando – Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

“Foi numa quinta-feira. Aqui estava tudo cheio de pó porque ele estava mexendo na casa. Ele [o filho] estava usando máscara por causa do pó. Ele ia fazer o último exame da tuberculose. E aí eu cheguei. Ele é muito bagunceiro, né? Então, a briga aqui em casa era isso. E nesse dia, na quinta-feira, eu cheguei [do trabalho]. E a última conversa [que tivemos e] que eu me lembro era que ele tinha que acabar essa parede aqui [ela aponta uma das paredes da sala]. Aí ele me chamou, sentamos na escada. Ele falou ‘mãe, olha lá, vê se está bom’. ‘A parede amarela?’ ‘É’. Eu falei ‘está bom, filho”. Quando eu cheguei em casa, estava tudo limpo. Eu até falei ‘nossa, milagre, né? Porque eu que fazia tudo’. Ele falou: ‘mãe, já tirei o pó, tudo’. E foi tomar banho. Era quase 8h [da noite]. E aí ele saiu [de casa]”, contou dona Zilda.

Fernando tomou banho e saiu de casa com destino ao bar do Juvenal, onde foi encontrar alguns amigos. E nunca mais voltou para casa. Foi lá que ele e mais oito pessoas foram assassinadas por um grupo de homens armados que desceram de um carro disparando de forma aleatória.

“Hospital de guerra”

Ao receber a reportagem da Agência Brasil em sua residência em uma tarde de julho deste ano, dona Zilda se lembrou de ter escutado um barulho estranho naquela noite. Inicialmente, ela achou que eram fogos de artifício, mas logo descobriu que era barulho de tiros e que os disparos haviam atingido seu filho único.

“Quando eu entrei lá, eu vi meu filho na maca. Aí ele e outro moleque [estavam mortos]. E os outros caras todos feridos. Parecia um hospital de guerra. E chegava gente. Era gente gritando”, contou.

Mais tarde, já na delegacia, ela teve a confirmação de que policiais que viviam na região e e patrulhavam a área haviam assassinado Fernando. As investigações mostraram que seu filho morreu sem que houvesse qualquer processo criminal ou acusação contra ele. “Todos os meninos foram investigados. Não tem nada contra ele.”

Passados dez anos, as paredes pintadas por Fernando continuam da mesma forma. Mas não dona Zilda. Negra, pessoa simples, que trabalhou muitos anos como empregada doméstica, teve cinco abortos antes de dar à luz seu filho único e está separada desde que ele era pequeno, dona Zilda virou uma liderança não só na comunidade em que vive, mas para diversas outras mães que tiveram seus filhos assassinados em todo o país. Atualmente ela vive só, com a companhia apenas dos cachorros.

“Eu mudei muito meu comportamento. Tem horas assim que eu acho que eu já engoli muito sapo, já levei muita porrada na vida. Eu já caí, morei na rua, chuva, fome, e superei isso. Mas ele morreu do jeito que morreu, filha”, desabafou ela para a reportagem. “É muita carga e eu estou sozinha, mesmo. Eu não sou guerreira, não”, diz.

A luta de dona Zilda não começou com a morte do filho. Sua vida toda foi sempre difícil, embora, em sua humildade, ela não se reconheça como uma lutadora. “Quando eu nasci, eu surgi, que eu não sei quem é meu pai nem quem é minha mãe”, conta ela.

“Meu único sangue era ele [o filho]. Agora não tenho direito de ser vó. Me tiraram tudo. Acabou. Mas eu falo que eu acho que eu nasci mesmo para isso”, diz.

 



 Zilda Maria de Jesus preside o Movimento Mães de Osasco e Barueri e a Associação 13 de Agosto – Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Mães de Osasco

O que aconteceu nas três cidades da Grande São Paulo em 2015 ficou conhecido como chacina, termo usado para descrever um ato violento que envolve um grande número de vítimas, de forma simultânea ou em curto período de tempo. Normalmente, por trás desses ataques, estão grupos de extermínio que podem envolver algum agente público, como um policial. Quando têm envolvimento de agentes públicos, costumam apresentar um fator em comum: são registradas logo após a morte de um policial.

Segundo o estudo Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, publicado pela Fundação Perseu Abramo, em 2019, “as chacinas são uma expressão radical da violência letal como recurso político de controle social”. Para os pesquisadores, “os assassinatos múltiplos são comumente utilizados como uma demonstração pública de poder, utilizado tanto por organizações criminosas como por agentes públicos, principalmente em contexto de instabilidade institucional ou de disputa por territórios e mercados”.

A chacina ocorrida em Osasco, Itapevi e Barueri é um dos muitos exemplos de violência no estado de São Paulo. Um levantamento conduzido pela cientista social Camila Vedovello aponta que, entre os anos de 1980 e 2020, foram registrados 828 homicídios múltiplos nas cidades que compõem a região metropolitana de São Paulo, o que inclui a capital paulista. Só no ano de 2015, quando ocorreu a chacina de Osasco, foram registradas ao menos 15 ocorrências desse tipo entre os meses de janeiro e outubro, em todo o estado.

Um outro momento em que ocorreram muitas mortes no estado de São Paulo em um só evento foi em 2006, quando ocorreram os chamados Crimes de Maio, que provocaram a morte de, ao menos, 564 pessoas.

Foi a partir dos Crimes de Maio que teve origem uma das organizações mais fortes e reconhecidas na luta pela defesa dos direitos humanos no Brasil: o Movimento Mães de Maio. Composto pelas mães de vítimas, o grupo surgiu da união dessas pessoas em luto e também pela busca por justiça.

Inspiradas nesse movimento, as mães das vítimas de Osasco e Barueri também decidiram unir forças. E foi assim que nasceu o Movimento Mães de Osasco e Barueri e a Associação 13 de Agosto, presididas atualmente por dona Zilda. “A gente não tem nem direito de guardar o luto”, disse ela, que acabou transformando o luto em luta. “Eu já estou morta, filha”, disse ela à reportagem.

Todos os anos, essas mães prestam homenagem a seus filhos que foram assassinados por agentes do Estado. Em 2025, o ato ocorrerá no próximo sábado (16). “Eu não quero dinheiro, ninguém quer dinheiro”, diz dona Zilda, reforçando que o que as famílias mais querem é justiça e a responsabilização dos culpados.

Dona Zilda sabe a dificuldade que é para essas famílias conquistarem esse objetivo. “Fala para mim: qual a resposta de justiça? Você vê toda hora isso [voltar a acontecer]”, diz. “É que nem eu sempre falo. O Brasil é tão cheio de escândalo que os caras nem descobrem aquele e já vem outro”, completa.

Outro lado

Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que o inquérito policial instaurado pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) para investigar o caso foi concluído em dezembro do mesmo ano, “com a identificação e indiciamentos de oito pessoas – sete policiais militares e um GCM [guarda civil metropolitano]”. Segundo a secretaria, “todos os PMs envolvidos no caso foram expulsos da corporação”.

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