Em uma época em que o Estado perseguia travestis apenas por existirem, foi na arte que Divina Valéria, uma das artistas travestis mais conhecidas e respeitadas no Brasil encontrou um espaço para ser quem era. Durante a ditadura militar no Brasil, ela estreou como cantora na noite carioca e integrou o espetáculo Les Girls, um marco para a cena trans e que ganhou visibilidade no Brasil e fora.
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“Eu já tinha me travestido em bailes de carnaval, né? Todo ano me travestia para o baile de carnaval, mas não diariamente. Quando eu fui convidada para esse espetáculo, eu continuava a me travestir apenas no palco. Fora do palco, eu andava de menininho, entende? Porque era a época de ditadura, 1964, e não era permitido estarmos vestidas de mulher no meio da rua, era só no palco”, conta Divina à Agência Brasil.
E esses momentos no palco foram, para ela, muito naturais. “Meu amor, olha, naquela época tudo foi muito natural. Eu nunca tinha pensado em fazer travesti nem nada, quando, de repente, eu fui convidada para um espetáculo que era somente de travesti, que era uma grande produção.”
O espetáculo contou com o roteiro de Mario Meira Guimarães, com a criação musical de João Roberto Kelly e direção de Luís Haroldo, e viria a consolidar um formato de apresentação que seguiria pelas décadas seguintes. Na época, o espetáculo chegou até a reverter a renda para as ações das Irmãs Vicentinas, congregação religiosa feminina católica.
Foi a partir da década de 1970, quando se mudou para Paris, que Divina Valéria deixou de ser travesti apenas no palco e assumiu para o mundo quem ela era realmente.
“Eu assumi viver totalmente de mulher, totalmente minha personalidade feminina, que afluía muito mais em mim. E foi em Paris que tudo isso começou porque, chegando lá, eu fui trabalhar [na casa noturna] Carrousel de Paris, onde tinha as travestis mais famosas e mais bonitas do mundo. Eu fui trabalhar nessa casa e, logicamente, ali com elas, eu peguei todo o know-how e também me transformei em uma mais”, diz.
Aos 79 anos e 60 anos de carreira, Divina Valéria passou por teatros, pela televisão e pelo cinema.
“A arte pra mim é tudo. Eu vivo da arte a minha vida inteira, eu sempre vivi da arte”, sintetiza.
As principais referências da artista são as estrelas de Hollywood, como Greta Garbo e Ava Gardner. Os papéis preferidos de sua carreira são aqueles totalmente diferentes de quem ela é no dia a dia. “É bom ver personagens diferentes, né? Fazer a Divina Valéria eu já faço nas 24 horas do dia”, diz.
Ela destaca três trabalhos como os mais recentes preferidos: Ema Toma Blues, com texto de autoria de Aninha Franco, espetáculo que ela estrelou em 2005; o filme Nada Somos, ainda em produção, que conta quatro histórias, sendo Divina Valéria a protagonista de uma delas; e Alice Júnior 2 – Férias de Verão, com estreia prevista para 2024. “Nele, eu vivo uma mulher de quase 100 anos, matriarca de uma ilha, não tem nada a ver com a Divina Valéria”, antecipa.
Um papel que ela ainda quer fazer é algo na “linha dramática”, como o de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses. “Um personagem talvez mais forte, né? Sempre um personagem que não seja a Divina Valéria”, enfatiza.
No dia a dia, ela é Divina Valéria, que
define da seguinte maneira: “Uma pessoa como todo mundo, com momentos felizes, momentos menos felizes, com uma vida um pouco atribulada, porque a vida artística é um pouco assim, seja por muita viagem, seja, às vezes, financeiramente, às vezes está com muito dinheiro, às vezes não está com nada. É vida de artista, é uma corda bamba, mas é a vida que eu gosto de viver e que eu já vivo vai fazer 60 anos agora, em 2024”.
Para marcar a visibilidade trans, cuja data é 29 de janeiro, a Agência Brasil
publica
histórias de cinco artistas trans na série Transformando a Arte, que segue até o dia 31 de janeiro.